A Miss, " O pequeno Príncipe"e a Transgeracionalidade

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Década de 1960- Porto Alegre: época da MPB, Bossa Nova, Jovem Guarda; primeiras imagens da então maravilha da tecnologia, a TV. No cinema a sétima arte : filmes de Godard, genial diretor da Nouvelle Vague francesa. Brigite Bardot , Jean- Louis Trintignant, Belmondo. Catherine Deneuve , linda e etérea como sempre em " A bela da tarde", Marcelo Mastroianni, Sophia Loren , um elenco interminável.. Carmem Miranda, " A Pequena Notável" já brilhava nos Estados Unidos, Oscarito, Grande Otelo, grandes brasileiros na atividade cênicas; Hair ( símbolo de uma geração protestando contra a Guerra do Vietnã), sucesso no Teatro Leopoldina. Tudo acontecia.

No bairro Floresta, uma adolescente-mulher, anos dourados " olhando a banda passar, cantando coisas de amor", embevecida em seu azul olhar. Narcísico, suficientemente narcísico, nada mais, apenas o necessário para olhar-se no espelho de seu quarto; o olhar de sua mãe já havia sido suficientemente bom e internalizado; a psicanálise explica. Era, diziam, linda, graciosa, meiga de atitudes e feições, encantadora com seu sorriso franco. Seus arroubos  dos 17 anos, não incomodaram seus pais e os dois irmãos que a amavam , sábios de tantos anos também seus em suas histórias.

Esta moça, de repente, vestiu o lindo manto vermelho, a coroa e recebeu uma faixa de Miss, tornando-se assim, uma soberana  das praias gaúchas: " Rainha do Atlântico Sul, 1966". Era pura natureza, cirurgias plásticas eram impensáveis assim como aspirar a carreira de modelo. Bastava ser assim: feliz, desfilando na passarela, procurando o olhar de sua mãe no meio da multidão até rolar a lágrima contida, quando aqueles outros familiares olhos igualmente azuis a contemplaram junto a beleza do bouquet de flores, que abraçava carinhosamente em seus braços. Um abraço, mais um e não despertou do sonho. Era real. Essa moça era eu.


Rainha do Atlântico Sul -1966

Lia sim, " O Pequeno Príncipe" de Saint- Exupéry, livro sugerido pelo juri do concurso e do qual tinha que dar conta na entrevista, que então já existia. A cultura também tinha suas sutís pinceladas neste concursos de beleza. Bastava para uma iniciante, penso agora. Era só o início para entender o mundo que me aguardava. Evocar, lembrar com carinho: " só se vê bem com o coração... o essencial é invisível para os olhos"... " te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas", faz bem a quem assim, teve sua iniciação no pensar a vida, no filosofar junto a colegas e professora de Filosofia da Escola Normal, junto às obras de Cassimiro de Abreu, Drumond e entendendo que existia uma mitologia grega com seus deuses. Este livro foi rotulado como a "leitura das misses" mas  até hoje, me trazem ternas e afetivas lembranças sem me importar com a estereotipia com a qual hoje, não concordo. Seguir rótulos, é não ter noção da própria dimensão de si.

Eternas são as lembranças " daquela época", dos almoços de domingo, beijinhos no namorado no portão, do grupo de  amigas que alegres, íamos ver o Prêmio Bento Gonçalves no Hipódromo do Cristal. Ver o prêmio ou os jovens apostadores??!! Mesmo sem usar chapéus, era puro glamour  e encantamento. Os bailes da Reitoria, embalados pelos boleros de Norberto Baldauf. Saudades dos cinemas Vogue, Coral, Cacique, Imperial; da Sogipa, veraneios em Imbé... tantas emoções... momentos encantadores inesquecíveis.

Neste meu viver de longa data, conheci mitos  de perto: Elis Regina, já famosa, foi minha colega de Escola mas como um mito, eu não me permitia ter acesso a ela. Só vislumbrava a artista que emergia.

Também nas famílias existem mitos. Tive esta experiência: uma tia. Anita de Wallau, cantora lírica, charmosa e culta, atriz de teatro mas que precisava de muito espaço para brilhar e compartilhar seu talento, por isto viveu na capital com a permissão de seus pais ( meus avós) e assim se afastou dos irmãos que moravam no interior do Estado. Nasceu e morreu  antes da metade do século passado. Viveu pouco para mostrar todo seu talento. E agora sei que ela foi um mito , um ídolo feminino para mim.

Será que também nos constituímos um mito em relação às nossas famílias?

A Transgeracionalidade explica a questão desta admiração, dos talentos, das identificações, assim como dos segredos familiares que passam de geração em geração. Seguindo uma leitura psicológioca, toda a família tem seus mitos.

E o que é Transgeracionalidade?

São os traços de personalidade, a aparência física, as semelhanças nos gestuais, o modo de agir, a herança cultural que herdamos dos antepassados.

A transmissão psíquica entre gerações é um legado herdado de nossos antepassados. Sabemos que existem famílias que depois de uma avaliação psicológica são consideradas depressivas; outras narcísicas. Algumas guardam importantes segredos que se escondem atrás do não-dito, de um diálogo de surdos, escondido atrás de entre - olhares desviados, pontuados por silêncio, por interrogações e pausa; a geração seguinte sempre ouvirá a história familiar entrecortada e assim sucessivamente.
Freud através de sua obra " Psicologia de Grupo e análise do Ego" já se preocupava com o estudo da presença da intersubjetividade, lançando um olhar para a Psicologia Social; para ele,o primitivismo da infância já sugere uma Psicologia Social. O legado transgeracional impulsionando a vida através do nascimento da subjetividade.

Nas famílias de imigrantes, existe normalmente a preservação de suas culturas, mantendo vivas  a história de seus ancestrais: valorizam o significado de sua herança, transmitindo assim, aos seus descendentes.

A transgeracionalidade de minha família se constitui de vários viézes. Por parte de minha mãe , traços de personalidade e de caráter como  a doçura, generosidade e delicadeza; pelo pai, a "garra", dedicação e convicções.

Pois, aqui está o meu bisavô. Me considero, então, privilegiada pois parece não haver mistérios, dúvidas. A narrativa aparece sem pensamentos fantasmagóricos. Tem sua própria identidade. Então, como verdadeiros herdeiros de nossa origem, poderemos dar continuidade à nossa história, que será levada aos filhos e netos.


Recorte da Zero Hora - Túnel do Tempo
 E quem não tem esse olhar de sua história ?


A Terapia Familiar surge como esclarecedora, no sentido de trazer à tona o não-dito, para que não fique enclausurado, perdido no porão da ignorância, no sentido mesmo do não-saber e asim salvar o bem mais precioso da transgeracionalidade: passar a história para os descendentes.


Deleuze e Nietzche pontuam que existe uma função dialética em cada história: mas que prevaleça a mais fidedigna, para a saúde e lembrança de cada família.


 Anita de Wallau- cantora lírica, atriz teatral ( 1908-1957)


4 comentários:

renata lehmann disse...

Sonia, que belo texto! amei tua história, tuas lembranças e o valor de terapia familiar. Parabéns. Continue nos brindando com teus escritos!
Linda foto, mostrando essa moça romantica e doce no seu esplendor de juventude, com tudo pela frente a ser vivido! beijos

Margaret Leão disse...

Sonia! Parabéns, texto maravilhoso!Adorei a foto de miss,está deslumbrante, e agora continua sendo uma linda mulher.Acho que esta foto deverias publicar no face.Beijos querida amiga!(Margaret Leão)

Mari Travi disse...

Sonia querida! Fiquei deslumbrada com tua história! Amei!!!! Tua foto de miss, lindíssima como até hoje. Tu irias adorar a palestra de Ives de La Taille, um filósofo contemporâneo brasileiro e professor da USP. Ele diz que o tédio acontece no momento em que não temos viva em nossa memória a história de nossa família,a história dos nossos antepassados, sendo que muitos são imigrantes como no teu caso. Ives diz que o homem atual é fragmentado e vive de "eventos" atuais e não da história, ou da própria ou a história em si. Portanto querida, parabéns pela tua história e a história de teus antepassados, pois isso que te faz ser a mulher maravilhosa que és. Acredito que é isso que favorece e muito, a tua capacidade de escrever e nos brindar com esses textos belíssimos. Muito obrigada querida! Um beijão

virgínia além mar floresta vicamf / disse...

No bairro Floresta, uma adolescente-mulher, anos dourados " olhando a banda passar, cantando coisas de amor", embevecida em seu azul olhar. Narcísico, suficientemente narcísico, nada mais, apenas o necessário para olhar-se no espelho de seu quarto; o olhar de sua mãe já havia sido suficientemente bom e internalizado; a psicanálise explica. Era, diziam, linda, graciosa, meiga de atitudes e feições, encantadora com seu sorriso franco. Seus arroubos dos 17 anos, não incomodaram seus pais e os dois irmãos que a amavam , sábios de tantos anos também seus em suas histórias.

Esta moça, de repente, vestiu o lindo manto vermelho, a coroa e recebeu uma faixa de Miss, tornando-se assim, uma soberana das praias gaúchas: " Rainha do Atlântico Sul, 1966". Era pura natureza, cirurgias plásticas eram impensáveis assim como aspirar a carreira de modelo. Bastava ser assim: feliz, desfilando na passarela, procurando o olhar de sua mãe no meio da multidão até rolar a lágrima contida, quando aqueles outros familiares olhos igualmente azuis a contemplaram junto a beleza do bouquet de flores, que abraçava carinhosamente em seus braços. Um abraço, mais um e não despertou do sonho. Era real. Essa moça era eu...." Querida Sonia que maravilhosa introdução para passar a discorrer de um tema tão interessante da psicologia. Tens o dom e chamar-te de amiga tem sido a cada dia mais significativo! Parabéns pela capacidade de transmitir conhecimentos de maneira tão encantadora. Abraços afetuosos e gratos, tua virgínia vicamf NHamvurgo RS BR